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apontamentos sobre o desastre no RS


Opinião

Existe uma preocupação histórica em punir condutas humanas que propiciem inundações, malgrado estas sejam fenômenos eminentemente naturais. Note-se que, enquanto a passagem de Ulpiano no Digesto (47.12.10) previa que a inundação provocada pelo rompimento de diques do rio Nilo consistia em crimina extraordinaria, os imperadores Teodósio 3º e Ulpiano 8º (409 d.C.) determinavam a imposição de pena capital àqueles que rompessem os diques do rio Nilo.[1] Na cidade de Veneza, o rigoroso Decreto de 1.501 punia com mutilação e confisco quem ousasse destruir os diques. [2]

Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

Enchentes no Rio Grande do Sul, Porto Alegre alagada em maio de 2024

Bem por isso, uma vez compreendido como elemento de contenção e racionalização do jus puniendi, o direito penal acabou incorporando tal preocupação histórica com o curso das águas. No Brasil, isso deságua justamente nos crimes de inundação (artigo 254 do CP) e de perigo de inundação (artigo 255 do CP), os quais preservam a redação originária atribuída pelo Decreto-Lei nº 2.848/40 (CP), havendo poucos precedentes de aplicação destes crimes pelos nossos tribunais.

Ocorre que, com a recentíssima enchente ocorrida no Rio Grande do Sul, consistindo na maior tragédia climática ocorrida em solo gaúcho, senão na maior da história do Brasil, aproximando-se (ou superando) da magnitude dos desastres de Mariana (MG) e Brumadinho (MG), surgiram algumas reflexões sobre eventual responsabilidade dos gestores públicos acerca da política de prevenção e reação ao desastre natural ocorrido no RS, havendo uma possível (co)participação do poder público, sobretudo na dimensão adquirida pela enchente em alguns municípios.

Muito provavelmente, dentre os diversos municípios severamente atingidos, a capital gaúcha concentra o maior número de críticas. Por exemplo, em reportagem divulgada pelo G1, Walter Collischonn, o qual é professor de Engenharia Ambiental e Hídrica na UFRGS, afirmou que o sistema contra cheias de Porto Alegre falhou miseravelmente. [3] Ato contínuo, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), determinou a instauração de um procedimento de investigação do sistema de prevenção às enchentes da capital gaúcha no âmbito do DMAE, departamento administrativo responsável pelo tratamento de água e esgoto. [4]

O que não faltam, portanto, são vozes que sustentam a responsabilidade do poder público, cujo raio de abrangência vai da responsabilidade civil da administração pública por danos materiais e morais suportados pelos flagelados até a responsabilidade administrativa dos gestores públicos por eventuais falhas no sistema de proteção às cheias. Nesse contexto, situa-se o crime de inundação (artigo 254 do CP), cujos contornos típicos-normativos são dignos de atenção:

Art. 254 – Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:

Pena – reclusão, de três a seis anos, e multa, no caso de dolo, ou detenção, de seis meses a dois anos, no caso de culpa.

O crime de inundação (artigo 254 do CP), no âmbito da tipicidade objetiva, configura-se na modalidade comissiva e omissiva imprópria ou comissiva por omissão. No primeiro caso, o autor causa a inundação a partir de um agir positivo, o qual pode se dar através da liberação de barragens, destruição de diques, desativação de bombas centrífugas, etc. Por outro lado, a modalidade omissiva imprópria ou comissiva por omissão ocorre mediante um agir negativo — ou seja, um não agir — praticado por uma pessoa que ocupa uma posição de garantidora (artigo 13, § 2º, do CP) diante de um dever jurídico de agir.

E aqui, assim como tantos outros ramos do direito penal dependentes da assessoriedade administrativa, reside o primeiro problema dogmático: o que é o dever jurídico de agir? Ressalte-se que, como bem diagnosticado por Juarez Cirino dos Santos, “[n]os tipos de ação, o dever de omitir a ação proibida é, geralmente, claro, mas nos tipos de omissão de ação o dever de realizar a ação mandada é, normalmente, obscuro para o destinatário da normal penal”. [5]

Spacca

Nessa discussão, o espanhol Francisco Muñoz Conde sustenta que “[o] delito de omissão é, assim, estruturalmente sempre um delito que consiste na infração a um dever. Mas, não de um dever social ou moral, senão de dever imposto pela lei, em função da proteção de bem jurídico”. [6] No mesmo tom, embora compreendendo o dever de agir e o poder de agir de forma una, Juarez Tavares sustenta que a “omissão, que se vincula a uma conduta devida, portanto a um dever de agir, não pode o empírico ser tomado exclusivamente em face de possibilidade e impossibilidade física, senão também normativa”. [7]

Por certo, uma concepção liberal de direito penal, calcada no princípio da legalidade (artigo 1º do CP), mostra-se incompatível com uma interpretação subjetiva do dever jurídico de agir, impondo-se uma interpretação estritamente objetiva. Ou seja, exige-se que o dever jurídico de agir decorra de uma norma jurídica vigente, aplicável ao caso e cujo conteúdo seja claro e dispositivo. Caso contrário, criminalizar-se-iam decisões exclusivamente políticas; todavia, mesmo que equivocadas, tais decisões podem estar dentro da margem de discricionariedade do gestor público na implementação de sua plataforma governamental.

Além disso, existe um segundo problema dogmático incidente sob a modalidade omissiva imprópria do crime inundação: a quem era dirigido o dever jurídico de agir? Afinal, embora a maioria dos funcionários públicos para fins penais (artigo 327 do CP) sejam facilmente inseridos no rol do artigo 13, § 2º, do CP, assumindo a posição de garantidor, o dever jurídico de agir deve ser específico (não amplo), direcionando-se a alguém ou, no mínimo, a um grupo de pessoas, sobretudo ao tratar de normas que regem a administração pública, caracterizada por uma estrutura hierárquica complexa e densa. Em outras palavras, a pessoa que praticou a conduta omissiva deve ser destinatária direta do dever jurídico de agir, sob pena de abrir a possibilidade de punir todo e qualquer funcionário público ou apenas o chefe do Poder Executivo.

Ademais, superados os dois primeiros problemas dogmáticos, os quais radicam sob o dever jurídico de agir do garantidor, existem outros dois problemas. O primeiro é o poder de agir do gestor público, o qual, particularmente, consubstancia-se na disponibilidade de recursos públicos suficientes, assim como na existência de respaldo legal e autorização para a ação. Logo, “[n]ão há conduta devida de auxílio quando não existe possibilidade de prestá-lo”. [8] Por sua vez, o segundo é a causalidade estabelecida entre o resultado e a ação omitida, exigindo-se que a omissão do gestor público possua o condão — no mínimo, potencial — de evitar a inundação, resultado naturalístico previsto pelo tipo penal do artigo 254 do CP.

Em resumo, ao identificar (e explorar) quatro problemas dogmáticos existentes no processo hipotético de imputação do crime de inundação (artigo 254 do CP) a eventuais gestores públicos, na modalidade omissiva imprópria ou comissiva por omissão, em razão do desastre climático ocorrido no Rio Grande do Sul, buscou-se endossar a razão mais genuína da existência do direito penal: o seu papel de dique de contenção do poder punitivo do Estado, sobretudo em casos rumorosos, caracterizados por arroubos punitivistas e que, no mais das vezes, são frutos de erros massivos e generalizados dos seres humanos.

 


[1] PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal. Vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 85.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial: crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública (arts. 213 a 311-A). Vol. 4. 17. ed. São Paulo: Saraivajur, 2023. p. 169.

[3] PONTES, Nádia. Por que sistema contra cheias não funcionou em Porto Alegre. Jornal Gl. 18 mai. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/meio-ambiente/noticia/2024/05/18/por-que-sistema-contra-cheias-nao-funcionou-em-porto-alegre.ghtml. Acesso em: 29 mai. 2024.

[4] BONI, Mathias. Prefeitura determina investigação no Dmae após revelação de alertas sobre deficiências em casas de bomba. GZH Digital. 25 mai. 2024. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2024/05/prefeitura-determina-investigacao-no-dmae-apos-revelacao-de-alertas-sobre-deficiencias-em-casas-de-bomba-clwmo9k5c00d9014x6u2qiekl.html. Acesso em: 29 mai. 2024.

[5] DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014. p. 212.

[6] MUÑOZ CONDE, Fracisco. Teoria geral do delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 30.

[7] TAVAREZ, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 440.

[8] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 484.

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