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Chico Buarque e o drible na ditadura ao lançar a clássica ‘Apesar de você’
Chico Buarque foi um dos artistas mais visados pela ditadura militar. Opositor do regime, ele participou da Passeata dos Cem Mil, em 1968, no Rio, e, no mesmo ano, escreveu o espetáculo “Roda Viva”, um símbolo de rebeldia que virou alvo da violência de simpatizantes do governo. As obras do autor eram frequentemente censuradas. Mesmo assim, o poeta da MPB, que completa 80 anos nesta quarta-feira, driblou diversas vezes o aparato criado pelos generais para bloquear críticas. Um desses “olés” foi o samba “Apesar de você”.
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Lançada no fim de 1971, repleta de alfinetadas na ditadura instalada após o golpe militar de 1964, a canção, hoje um clássico, passou sem ressalvas pelo crivo da censura. O compacto, que incluía ainda a música “Desalento”, teve algo em torno de cem mil cópias vendidas em coisa de três meses. Só em em maio de 1971, quando a obra já havia tocado muito nas rádios, e boa parte do público cantava os versos de cor, os militares se deram conta do “gol” que tinham tomado por debaixo das pernas.
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O Brasil vivia o momento mais tenso do período autoritário, em plena vigência do Ato Institucional 5 (AI-5), que suspendeu garantias individuais. Editado em 13 de dezembro de 1968 pelo presidente Artur da Costa e Silva, o decreto abriu caminho para a prisão e a tortura de uma série opositores. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram encarcerados duas semanas após a publicação do AI-5. Eles estavam na cadeia quando, no dia 4 de janeiro de 1969, Chico Buarque partiu em uma turnê na Itália. Temendo ser preso em seu retorno ao Brasil, decidiu ficar por lá, em auto-exílio, até a poeira baixar.
O compositor achou que poderia se manter fazendo shows na Europa. Mas a realidade foi outra. Não havia mercado para música brasileira no Velho Mundo, como existe hoje. Os convites para novas apresentações eram raros. Sem condições de recusar ofertas, o astro da MPB saiu em turnê acompanhado de Toquinho, abrindo shows para a diva do jazz Josephine Baker, cantora de origem americana que atuara na resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial.
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Mesmo lidando com dificuldades financeiras, Chico viveu durante 14 meses na Itália. Sua primeira filha com a atriz Marieta Severo, a também atriz Silvia Buarque de Holanda, nasceu no país europeu. O casal estava “grávido” da segunda menina, Helena, quando o compositor e sua companheira decidiram que não dava mais pra ficar no Velho Continente. O próprio artista disse, em entrevista ao GLOBO publicada anos mais tarde, em julho de 1979, que “depois de dois meses eu já não tinha o que fazer por lá”.
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Mas ele não podia retornar na surdina. Seria um prato cheio para a repressão prendê-lo sem ninguém saber, como foi com Caetano. Então, Chico e os amigos espalharam para todo mundo sobre a chegada dele, às 8h do dia 20 de março de 1970. Quando o avião baixou no Aeroporto do Galeão, no Rio, havia uma claque de famosos, como Paulinho da Viola, Nelson Motta e Betty Faria, além da imprensa. “Volta de Chico Buarque deu festa para a noite inteira”, dizia a reportagem do GLOBO, no dia seguinte.
O texto da matéria descrevia a recepção armada pelos amigos no badalado restaurante Antonio’s, no Leblon, na Zona Sul do Rio. “O meu whisky é sem gelo, Manolo, já esqueceu de mim?”, reclamou o compositor recém-chegado, dirigindo-se ao proprietário do hoje extinto estabelecimento. Manolo, por sua vez, brincou dizendo que tinha até deixado a barba crescer, como promessa, para só raspar quando o cantor retornasse ao país. “Vou cortar amanhã”, garantiu o dono do restaurante.
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Só que o Brasil não estava para festa. O AI-5 inaugurou o que historiadores chamam, hoje, de “anos de chumbo”. Grupos de luta armada roubavam bancos para se financiar e sequestravam embaixadores para libertar presos políticos. Órgãos de repressão prendiam, torturavam e matavam os supostos “terroristas” sem explicação. A maior parte dos desaparecidos políticos foi presa de 1969 a 1974. O nacionalismo extremista alimentado pela propaganda oficial tinha um lema: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
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Foi nesse clima sombrio que Chico compôs o samba “Apesar de você”. O autor carioca submeteu a letra à censura achando que poderia ser vetada, mas o encarregado de avaliar a canção comeu mosca e não entendeu que o “você” do verso-título era a própria ditadura: “Hoje você é quem manda/Falou, ‘tá falado/ Não tem discussão, não/ A minha gente hoje anda falando de lado/ E olhando pro chão, viu/ Você que inventou esse estado/ E inventou de inventar/ Toda a escuridão…”
Cantada por artistas famosas como Clara Nunes e Elizeth Cardoso em shows e nas rádios, a música do poeta de então 26 anos não demorou a fazer sucesso. Por algum tempo, o próprio Chico pensou que a obra não seria mais embargada. Até que, em fevereiro de 1971, o jornalista Sebastião Nery, da “Tribuna da imprensa”, escreveu que seu filho e os colegas ouviam “Apesar de você” como se fosse o Hino Nacional. Sem querer, ele tinha dado a deixa pra tudo começar a desandar.
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No início, muita gente pensava que a música se referia a algum relacionamento infeliz. Provavelmente, foi o que achou o censor que autorizou a letra. Mas, aos poucos, ficou claro que se tratava de uma crítica velada ao regime dos generais. Não faltaram indiretas de colunistas sociais e locutores de rádio. No dia 9 de janeiro de 1971, por exemplo, uma nota solta na coluna de Nina Chavs no caderno “Ela”, do GLOBO, soprava: “A composição de Chico Buarque ‘Apesar de você’ tem mensagem, tem mensagem”.
Sebastião Nery queria elogiar o samba quando escreveu a nota na “Tribuna”. Mas deu ruim, e ele foi chamado para depor na delegacia. A partir daí, surgiram os primeiros rumores de que a canção seria vetada. No dia 12 de abril, o colunista Carlos Swann, do GLOBO, publicou um questionamento em sua coluna: “Ninguém sabe o porquê da proibição de ‘Apesar de você’ no show de Elizeth Cardoso no Canecão. A melodia deveria encerrar o espetáculo, sendo, entretanto, interditada”, escreveu ele.
Semanas depois, no dia 7 de maio de 1971, os veículos de comunicação receberam uma nota oficial informando sobre a proibição da faixa. “Para mim, é surpresa”, comentou o próprio compositor em entrevista ao GLOBO. “Antes de gravar a música, mandei a letra para a Censura Federal de Brasília, que a liberou. Depois, tive probleminhas que foram resolvidos. Agora, acho bastante estranha esta atitude, se realmente ocorreu, pois a música está superconhecida e há cinco meses em cartaz”.
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Para não restar dúvida, militares invadiram a fábrica da gravadora Phillips e destruíram todas as cópias do compacto no estoque. Os exemplares a venda nas lojas foram recolhidos e também destruídos. Ainda que já fosse um sucesso, a canção foi proscrita e, mesmo nos nossos arquivos, não há menção de seu nome até 1977, quando o processo de abertura política havia sido iniciado, e o país caminhava para o retorno à democracia de forma “lenta, gradual e segura”, conforme os planos dos militares.
Chico também foi chamado para depor e teve a frieza de dizer, diante da polícia política, que o “você” da letra era uma “mulher mandona, autoritária”. Mas não teve jeito, o homem ficou marcado e passou a ter mais obras vetadas. “De cada três músicas que faço, duas são censuradas. De tanto ser censurado, está ocorrendo comigo um processo inquietante. Eu mesmo estou começando a me autocensurar. E isso é péssimo”, disse o poeta antes de um show no Canecão, em setembro de 1971.
A partir daí, foram vários trabalhos dele censurados, como a música “Cálice”, com Gilberto Gil, e a peça “Calabar: o elogio da traição”, escrita com Ruy Guerra e proibida no dia da estreia, 20 de outubro de 1974, no Rio. O espetáculo estava pronto. Foi uma fortuna jogada no lixo. No mesmo ano, Chico lançou o sugestivo “Sinal fechado”, álbum com músicas de outros autores, à exceção da faixa “Acorda, amor”, assinada por Julinho da Adelaide, pseudônimo que ele inventara para despistar a ditadura.
As coisas só começaram a melhorar nesse aspecto em 1977, quando até mesmo “Apesar de você” voltou a tocar em algumas rádios. No ano seguinte, a canção figurava como a última faixa do lado B do álbum “Chico Buarque”. Porém, em entrevista publicada por Nelson Motta em sua coluna no GLOBO, o próprio compositor contou que não ficou muito feliz ao incluir a música. Ele disse que esta e outras canções pertenciam “ao passado” e que chegara a pensar em excluir a faixa daquele LP.
“‘Apesar de você’ é um desabafo que tem um tom alegre, mas sem deixar de ter um tom de revolta. E revolta não é o tom das músicas que estou fazendo agora. Cheguei a pensar se deveria excluir, mas achei que poderia ser uma atitude pirracenta e até infantil. A gente mais nova nunca ouviu a música, que já tem oito anos e ficou marcada por ter sido lançada e proibida. Sabendo que as pessoas gostariam de ouvi-la, não me achei no direito de não gravá-la”.