Críticos têm seus preconceitos. E este confessa: tinha dois pés atrás com a cinebiografia “Bob Marley – One Love”, que estreia mundialmente nesta segunda-feira (12). O primeiro ponto a levantar uma sobrancelha foi a escolha do período histórico que o filme retrata.
A trama começa em dezembro de 1976, às vésperas do concerto “Smile Jamaica” que, inflamado pela tensão política em uma Jamaica pré-eleitoral em plena Guerra Fria, levou a um atentado contra a vida do astro do reggae.
Aborda o subsequente exílio em Londres, o diagnóstico do câncer que o mataria em 1981 e culmina no retorno triunfal à ilha, em abril de 1978, quando Marley protagoniza o festival “One Love Peace Concert”, unindo no palco o premiê socialista Michael Manley e o líder da oposição apoiada por Washington, Edward Seaga.
Qual o problema dessa moldura temporal? O fato de ser uma escolha conveniente do ponto de vista comercial. Os principais hits da carreira de Marley cabem na trilha sonora do período.
Os aclamados álbuns “Rastaman Vibration”, “Kaya” e, sobretudo, “Exodus” foram gravados nessa época, o que permite reciclar sucessos seguros, como “Three Little Birds”, “Jamming”, “Is This Love”, “One Love” e “Waiting in Vain”, entre outras.
Mas, para o deleite dos superfãs, o trato musical do filme é impecável. A obra reproduz detalhes preciosos do processo criativo de Marley e de sua cativante presença de palco, sobretudo numa arrepiante versão a ccapella de “So Jah Seh” e nas cenas em que os Wailers arranjam coletivamente “Exodus” e “Natural Mystic”.
Tudo conduzido pela performance de Kingsley Ben-Adir que, apesar de não ser músico nem jamaicano, fala um “patoá” convincente e reproduz até o peculiar estilo autodidata de Marley de tocar violão usando somente o polegar.
Além disso, a fase mais célebre da vida do primeiro superstar do terceiro mundo é entremeada por digressões à infância na pequena St. Ann e ao início da aventura musical na favela de Trenchtown.
Ali, desfilam personagens marcantes da construção do caráter e da carreira de Bob, como sua mãe Cedella Booker; Clement Coxsonne Dodd, o brutal capo da gravadora Studio One; o cientista maluco da produção musical Lee Scratch Perry; e o ancião rastafári Mortimo Planno.
Não que seja um filme só para fãs. O fio condutor da cinebiografia é a tensa relação entre Bob e a esposa Rita, interpretada brilhantemente por Lashana Lynch. Ao inserir o drama humano num thriller político e o embalar numa das vozes mais emblemáticas do século 20, o filme se universaliza.
Talvez o fato de Ziggy Marley, filho de Bob com Rita, assinar a produção tenha pesado para a centralidade do relacionamento —entre as muitas que Bob nutriu com diferentes mulheres— no roteiro. Apesar da consultoria histórica do ex-diretor de arte dos Wailers, Neville Garrick, e da ex-namorada e ex-miss universo Cindy Breakspeare, a autobiografia de Rita, “No Woman No Cry: Minha Vida com Bob Marley”, parece ser a principal referência de “One Love”.
Do ponto de vista cinematográfico, isso não é demérito. Cada altercação do casal protagonista é poderosa e comovente, seja nas discussões acaloradas em torno das traições de Bob, nas demonstrações de um amor que, sem pieguice, ultrapassa a carnalidade ou na descoberta conjunta da ancestralidade africana, que se materializa na conversão dos dois ao rastafarianismo.
A contrapartida dessa abordagem “ritocêntrica” é o quase desaparecimento da própria Cindy Breakspeare, com quem Marley chegou a compartilhar um apartamento londrino em 77. É possível que ela, figura fundamental dessa passagem da vida de Bob, um dos principais apoios dele após a descoberta do câncer, mãe de Damian Marley e musa inspiradora do clássico “Waiting in Vain”, não tenha uma fala sequer no longa. É pouco para o tamanho dela na história.
Apartado esse irônico apagamento da mulher branca, o filme faz jus à lenda da música e do povo negro, retratando sua genialidade criativa, seu compromisso revolucionário e suas contradições humanas.