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Marco temporal: o dilema das terras indígenas

Uma das questões mais relevantes que está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal é a tese do marco temporal sobre as terras indígenas. Ela sustenta que somente as terras efetivamente ocupadas, ou pelo menos disputadas, pelos índios na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, podem ser consideradas como terras indígenas.

Indígenas em Brasília (Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado)
Indígenas em Brasília (Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado)

Um bom começo para ingressar numa discussão de tamanha profundidade é deixar de lado os extremismos ideológicos. No caso dos índios, é preciso, de um lado, abandonar aquela crença preconceituosa de que são pessoas não trabalhadoras e sustentadas pelo Estado, e, de outro, não se pode mais encará-los como vítimas de um mega esbulho inaugurado em 22 de abril de 1500, merecedores de uma reparação atemporal ou perpétua.

A questão do marco temporal está sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 1017365/SC, e sua decisão terá força vinculante para todos os 82 processos sobre demarcação de terras indígenas no país.

Até o momento, os Ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes votaram pela não adoção do marco temporal, e o Ministro Nunes Marques votou a favor. A não aplicação do marco temporal significa dizer, basicamente, que uma pessoa que tenha comprado de boa-fé uma propriedade rural regularmente registrada no Cartório de Registro de Imóveis, poderá perdê-la se o Presidente da República homologar uma demarcação da FUNAI dizendo que aquela propriedade faz parte de uma terra de ocupação tradicional indígena, embora não tivesse nenhum índio lá há pelo menos 35 anos, quando da promulgação da Constituição Federal.

Correndo algum risco, ouso discordar do Ministro Alexandre de Moraes pela utilização do argumento segundo o qual “não há um modelo global de reparação aos povos originários pela ocupação de suas terras pelas nações colonizadoras”. Quem ler todas as Constituições desde 1934 verá que a intenção dos Constituintes não foi a reparação histórica, mas o respeito e a proteção estatal aos povos indígenas existentes.

O nominado Ministro também afirmou que quando a ocupação estiver consolidada por uma cidade, por exemplo, então não será possível a desocupação, uma vez que iria ferir o interesse público. Nesse caso, a União deve recompensar a comunidade indígena com o oferecimento de uma terra equivalente. Aqui novamente ouso fazer voz divergente, e já preparando-me para uma investigação no STF.

Nunca gostei muito desse tal “interesse público”. Quem é da área do direito sabe que muitas vezes ele funciona como um coringa. Se não tem argumento melhor, use o “interesse público” para justificar sua proposição. É claro que não se pode querer retirar uma cidade de uma terra que a FUNAI demarcar como de ocupação tradicional indígena. A questão é pragmática: o custo é inviável.

Além disso, a meu ver, não se deve confundir “interesse público” com o “interesse coletivo”, ao menos num país que se diz liberal-democrático. Num país assim, o “interesse público” começa pela proteção do indivíduo, com o estabelecimento das garantias individuais, dentre as quais, a propriedade, como faz o artigo 5º da Constituição de 1988.

Aliás, historicamente, o liberalismo nasceu para proteger os direitos da liberdade, da propriedade e da segurança, conforme consta do artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1789, fruto da revolução do povo francês contra o reinado de Luiz XVI, segundo o qual “o fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

Como a propriedade também é um direito fundamental, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, protegido como cláusula pétrea¹, também arrisco contrapor-me ao Ministro Fachin, que utilizou o argumento de que a posse imemorial das terras indígenas não se sujeita a marco temporal, pois se trata de direito fundamental.

Nesse imbróglio, fico com a posição do Ministro Ayres Britto, um dos mais reconhecidamente sensatos, cultos e renomados juristas que se sentaram no olimpo brasiliensis. Em 2009, Ayres Britto foi relator da Petição nº3.388/RR, que tratou da demarcação da terra indígena Raposo Serra do Sol. Em seu voto, ele utilizou a simples gramática da língua portuguesa para resolver a questão. Confira-se:

Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (grifo do original). Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo:
a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação;
b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine².

Curioso que no caso Raposa Serra do Sol o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal acompanhou o voto do Ministro Ayres Britto, relator do processo, julgando pela aplicação do marco temporal. Porque não foi atribuído efeito vinculante ao julgado, apenas 14 anos depois o mesmo Excelso Tribunal dá sinais de que pode alterar seu entendimento.

Definitivamente, o Brasil não é para amadores.

  1. Cláusula pétrea, segundo o parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição, é a parte do texto constitucional que não pode ser modificado por Emenda à Constituição.
  2. https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur180136/false
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