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Novo filme sobre Bob Marley revela lado religioso do astro do reggae
A Jamaica de meados dos anos 1970 era um barril de pólvora: facções políticas se digladiavam nas ruas, com saldo macabro. Então famoso na ilha caribenha, mas desconhecido fora de seu país, o cantor Bob Marley decidiu fazer um show pela paz em meio a uma onda de ataques na capital Kingston, em 1976. Contando com a simpatia de um primeiro-ministro esquerdista, Marley ignorou ameaças de membros do partido rival de direita – que eram contra os rastafáris, devotos da religião celebrizada pelo artista. Dois dias antes do show, a casa de Marley foi invadida por um grupo que disparou contra o músico e sua esposa, Rita. Ele foi atingido de raspão no peito e teve o antebraço perfurado, enquanto Rita levou um tiro na cabeça — o projétil parou a centímetros do cérebro, amortecido por seu turbante.
Bob Marley
Mesmo após sobreviver ao dramático atentado, recriado em Bob Marley: One Love, que estreia no país na quinta-feira 15, o músico não abdicou do elemento que movia sua música e espalhou o reggae pelo globo: a fé em Jah, ou Haile Selassié I (1892-1975), o Rás Tafari, último imperador da Etiópia, adorado pelos jamaicanos como um Jesus reencarnado. Apesar dos alertas, Marley e sua esposa, mesmo feridos, não recuaram: subiram ao palco para cantar a antológica War, cuja letra traz trechos de um discurso de Selassié sobre paz e amor.
O futuro é o começo: os ensinamentos de Bob Marley
É esse ídolo messiânico, mais que o autor de hits que vêm embalando baladas praianas há décadas, que emerge de One Love. “Há espiritualidade no que eles fizeram naquele show”, disse a VEJA seu filho Ziggy Marley (leia abaixo), um dos produtores do filme. Corporificado de forma notável pelo britânico Kingsley Ben-Adir, Marley tem sua trajetória recontada a partir das rusgas políticas — que o forçaram, pouco após o famoso show pela paz, a se autoexilar em Londres. Lá, Marley mergulhou em livros sobre Selassié e Marcus Garvey, teórico rastafári, e compôs Exodus (1977), álbum cujas letras versam sobre a diáspora dos negros escravizados da África e pregam seu retorno ao continente. Contra todas as previsões, o disco, gravado em parceria com a banda The Wailers, teve hits como Waiting in Vain e Three Little Birds, vendendo 1,6 milhão de cópias.
Se a questão religiosa é presença constante no longa, a música permeia cada cena, com Marley reforçando sempre o sentimento por trás de cada composição. “A batida está boa, mas falta o sentimento”, diz em uma cena, após desaprovar o ritmo da bateria. Por meio de breves flashbacks, somos apresentados à juventude do cantor, quando ele toma conhecimento dos rastafáris e da música tocada nos guetos do país, como o calypso e o ska, ambas de cadência mais rápida e alegre. Quando Marley insere seu tal “sentimento” nas músicas, reduzindo a cadência até um andamento hipnótico e compondo letras sobre paz, amor e a fé em Jah, é que o reggae ganha a forma que conhecemos hoje.
Legend – The Best of Bob Marley [Disco de Vinil]
A partir daí, Marley transformou o reggae em uma febre mundial de efeitos sentidos até hoje, do jazz ao rap e à música eletrônica. Com reflexos, claro, no Brasil. Apesar de o filme não mostrar a visita de Marley ao país, em 1980, a simpatia do músico pela nossa cultura está presente em várias cenas, com menções inclusive a Pelé. Marley amava e praticava futebol e, quando veio para cá, se sentiu em casa: revelou torcer para o Santos e jogou bola com Chico Buarque.
No Woman No Cry: Minha vida com Bob Marley
Seu hábito de fumar maconha é mostrado de modo natural no filme. Marley está o tempo todo queimando uma erva, já que ela faz parte do ritual rastafári — apesar de proibida na Jamaica. “Toda lei é ilegal, todo governo é ilegal”, pregava. A obediência aos preceitos da fé lhe custou a vida. Ao saber que uma ferida no dedão do pé era um câncer, optou por não amputá-lo por causa da religião — o que o levou à morte, aos 36 anos, em 1981. O que sobressai no filme é seu proselitismo pela paz. Já no fim da vida, Marley voltou à Jamaica para mais um show. No histórico concerto One Love, fez dois líderes rivais se reconciliarem e perdoou os atiradores que tentaram matá-lo. É a prova de que se manteve fiel a suas convicções, como canta na música que dá título ao filme: “Vamos ficar juntos e nos sentir bem”.
“Ele continuaria fumando”
Aos 55 anos, Ziggy, filho mais velho de Bob Marley, fala sobre a cinebiografia do ídolo e seu apreço pela maconha:
Como explicar a influência que o reggae tem até hoje? Não é o ritmo, e sim a mensagem. Qualquer um pode cantar na batida do reggae. Mas, como meu pai mostrou, há uma espiritualidade que a torna especial.
Por que a religião ganha tanto realce no filme? O objetivo é passar a mensagem de Bob Marley. O reggae é sobre paz, amor e união dos povos.
O que seu pai diria ao ver a maconha legalizada em vários países? Ele não acreditava em leis ou governos. Continuaria fumando, legalmente ou não. Seu desejo era que os governos trabalhassem pela união das pessoas. Não importava para ele como as autoridades tratavam a maconha.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879